domingo, 31 de maio de 2009

De Olhos Bem Abertos

“Antes eu não houvesse”, gritava há algum tempo atrás um tebano, em vista de seu desastre – pra não dizer tragédia. Gritava ele, não tanto pelos dois atos de sua peça do que por ter sido amo de seu próprio des(a)tino. Quanto mais fugimos, mais os seus avatares nos navegam para onde não sabemos querer. E não adianta fingir que não se viu...
Pois bem, como já dizia um Borges, ao acaso agradam as repetições. E, aí introduzo, com muito respeito àquele, que, além disso, o mundo adora o avesso do mesmo, adora o mesmo ao contrário.
Digo isso porque há algo, contável, relatável, da mesma estirpe do contável de Édipo. Porém, avessado.
Deu-se onde hoje chamam de Brasil. Sabe-se que lá, grande número de pessoas vivem em aglomerados – amontoadas, mal-enjambradas – que se denominam favelas. Lá, todo tipo de coisa acontece.
Uma dessas coisas é uma garota.
Tem seus 16 anos. Filha de quem. É uma dessas, da vida, if you know what I mean: noite após noite, cerca de 8 homens passam por seu leito, dando-lhe dinheiro para arrancarem mais um pedaço de seu hímen. Não que ela não goste – já se acostumara. Já se acostumara a tanto...
Moravam num barraco surrado ela, uma velha TV, um rádio, uma cama, uma privada, uma cozinha. Lá ela recebia seus homens. Vez por outra um deles ficava até o dia amanhecer. Era sempre o último da noite – ou o primeiro do dia.
Numa dessas noites, desses dias, ela e ele se deitavam; ele, aos roncos; ela, apenas descansando, de olhos fechados.
Abriu os olhos. Olhou para o homem: era velho, sujo, pelado, pelancudo, barrigudo. Sentiu um pouco de nojo. Ficou com vontade de roubá-lo, apenas pela raiva que o nojo a fez sentir. Num movimento felino, puxou a carteira do bolso de sua calça. Havia mais 5 dinheiros, o que é pouco pra pagar o ódio. Quem era esse rebotalho do mundo, esse Zé-ninguém filho-da-puta e fedorento que jazia aqui a meu lado? Pegou sua identidade, tão escrota quanto ele. Nome: Vanderlei Ferreira de Paiva.
Sua espinha se eriçou até a ponta de cada fio do seu corpo. O nome penetrou na sua carne tal como estaca em coração de vampiro: mortal. E injetava-lhe cólera, à medida que repetia esse nome pra si mesma. É ele! É ele!
Ficou imóvel. Um nó se atou na sua garganta. Olhou-o novamente pela primeira vez: sim, reconheceu os traços, hoje enrugados, o cabelo, hoje escasso, o corpo, hoje obeso, e viu sua própria imagem se embalando nesse corpo, nos primórdios da memória, se é que ainda a tinha. Sim, é ele. Era ele: painh’...
Nunca mais soube dele desde que, um qualquer dia, se viu sozinha ao acordar. Pensava que a maré o tinha levado. Ora, a maré trouxe de volta...
...o ódio, agora composto de um nojo que não cabia mais na palavra.
“Meu pai!”, pensou, “meu próprio pai!”, disse, trêmula, pegando uma faca debaixo do colchão.
No que ela o disse, ele abriu os olhos e se virou pra ela. Por um momento, se olharam. Ela, aterrorizada. Ele, aterrorizando. Não hesitou: cravou-lhe o objeto no pescoço, se afastando. Caiu no chão enquanto via o sangue sendo despejado daquele corpo. Ele agonizava e sua cólera aumentava, a ponto de precisar gritar “Olha o que você fez! Olha o que você fez!” até o homem não mais se mover. Mas ainda a frase martelava em sua cabeça: “Olha o que você fez!”, carregada de afeto, de um afeto absolutamente insuportável, e que a levou a, com a mesma faca, cortar a masculinidade de seu pai e entupir-lhe a boca com ela. “Olha o que você fez!”
Ela entrou num estado indescritível. Olhava para aquela cena, para aquele corpo, para aquele quarto, e a frase na sua cabeça; já não sabia mais nem de quem nem pra quem era aquela frase. Olhou-se num pedaço de vidro que tinha como espelho. “Olha o que você fez!”
Pegou a faca e cortou as pálpebras. Nunca mais pôde fechar os olhos.

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